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Velibor Čolić e Anna Kim refugiam-se na Literatura para contar a verdade
Em tempos de contestação aos migrantes, Velibor Čolić, escritor croata, que se sente francês, e Anna Kim, autora sul-coreana, que cresceu na Alemanha e na Áustria, identificaram, domingo, a literatura como uma forma de verdade, durante a sessão sobre “Diferença”, que decorreu no FÓLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos.
“Estou convencido de que a Literatura é muito mais inteligente do que a vida verdadeira. Temos de procurar e encontrar a verdadeira verdade na Literatura”, afirmou Velibor Čolić. “Se quiser saber como se escrevia na Rússia, no século XIX, não vou procurar numa enciclopédia, mas ler Dostoiévski”, justificou. “A arte é melhor do que a vida verdadeira.”
Anna Kim confessou ter um problema com a verdade, que justificou com a dificuldade em encontrá-la. “Mesmo os factos, são verdadeiros? Podemos questionar-nos. Se só for uma verdade para mim, é uma verdade individual”, disse. “E isso é muito valioso, em tempos em que os indivíduos se sentem oprimidos. É a verdadeira vantagem da Literatura.”
Autor de “O livro das despedidas”, Velibor Čolić assume-se como um refugiado político. “Pego nas piores partes da minha vida e escrevo. Conto a minha história pessoal numa tragédia coletiva: as guerras na Jugoslávia”, explicou. “Não temos de estar tristes para sermos sérios. É como se houvesse uma comédia, e a tragédia surgisse das cinzas da comédia. Tento contar a tragédia coletiva com o olhar de um homem mais pequeno, com 1,95 metros.”
Quando fugiu para França, depois de desertar da guerra nos Balcãs, há mais de 30 anos, Velibor Čolić teve de enfrentar vários obstáculos. O principal foi a língua. “Queria ser francês. A minha luta era entre o homem apagado, refugiado, sem dinheiro e sem documentos, e o homem vertical, que fala e compreende. Mas a língua francesa continua a ser a parte complicada”, assumiu, apesar de viver há mais anos em França do que na Jugoslávia.
“O meu país é a língua francesa. Agora escrevo em francês, com um sotaque dos cossacos”, disse o escritor. “Esta é a guerra invisível, mas também trágica, como os outros exílios”, confessou. “Tive de esquecer a minha vida anterior, com ajuda de alguns copos de álcool, mas há 10 anos que não bebo uma única gota”, garantiu. A este propósito, contou que lhe perguntaram se era verdade que todos os escritores são ébrios. “Não, apenas os melhores”, respondeu.
E se Velibor Čolić passa despercebido pela aparência, mas é “denunciado” pelo sotaque estrangeiro quando fala francês, com Anna Kim sempre se passou o contrário. Autora de “História de uma criança”, manifestou irritação por lhe estarem sempre a fazer perguntas sobre a Coreia do Sul, e pelas ideias pré-concebidas que as pessoas têm em relação aos asiáticos, como serem alunos geniais a ciências, o que não corresponde à verdade. “Eu nem participava nas aulas, para tentar ser invisível.”
Anna Kim percebeu que não correspondia às expectativas dos outros, e lamentou que nunca lhe tenham perguntado como é que sentia quando a abordavam sobre esses assuntos. Preocupada com a crise da migração e com o avanço da extrema-direita na Europa, como sucedeu, em setembro, na Áustria, contestou o facto de nunca se falar sobre as diferenças entre classes sociais e sobre as diferenças económicas entre as pessoas. “É importante olharmos para debaixo da superfície.”
“A Europa está a transformar-se num monstro. O estrangeiro é sempre o bode expiatório”, confirmou Velibor Čolić. “E nós somos sempre estrangeiros. Temos de conseguir aprender a viver com isso”, aconselhou. A este propósito, Anna Kim lamentou que associar o outro à biologia é “muito perigoso”. “Tenho esperança de que consigam ver os seres humanos como eles são.”