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Para Mia Couto, as pessoas não se podem dar ao luxo de não ter esperança
“As pessoas não se podem dar ao luxo de não ter esperança. Se não, não existem”, afirmou, este sábado, o escritor moçambicano Mia Couto, durante a apresentação do romance “A Cegueira do Rio”, no FÓLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos.
O autor defendeu que é possível ser feliz, apesar de estarmos sempre a ser lembrados de que “há um apocalipse a bater à porta”. “O medo de não ter paz, de não ter futuro, tudo se transformou numa ameaça”, precisou. “Esse sentimento de tristeza é um luxo, porque cada dia é um dia de sobrevivência.”
“Não há uma guerra em Moçambique, há várias guerras que estão a acontecer”, sublinhou Mia Couto. “E há uma máquina que faz com que tenham de acontecer, porque é gerado lucro disso”, alertou. “França, Alemanha, Estados Unidos, Rússia, não precisam de ter presença pública, porque fazem alianças com povos locais.”
A propósito do último livro, o editor da Caminho Zeferino Coelho lembrou que os rios têm um lugar muito importante no conjunto da obra de Mia Couto, como se fossem seres vivos. Em resposta, o escritor lembrou ser de origem africana, pelo que seria impossível sentir de outra forma.
“Os rios são como veias, como artérias, que põem em ligação territórios distantes”, disse o autor. “Há uma perturbação quase cósmica que faz com que não se encontrem no caminho, porque estão quase cegos”, acrescentou. “Eu posso tornar-me numa árvore, eu posso ser uma árvore”.
“As pessoas dizem: ‘esta noite fui um embondeiro, ou uma cobra”, exemplificou Mia Couto, pois entendem que, durante os sonhos, podem ser uma outra entidade. Biólogo de formação, explicou que existem 28 línguas em Moçambique. Contudo, em nenhuma delas há uma para dizer “natureza”.
Curioso em relação ao significado as palavras nos diferentes dialetos moçambicanos, contou que perguntou a uma mulher como se diz “rio” e ela respondeu: “água que engravida”. “Há uma fronteira para ler o mundo”, explicou.
Tendo formação europeia e, sendo cientista, contou que se questionou como iria reagir de modo a saber que o pai não tinha partido. Até que uma pessoa lhe disse: “o seu pai não foi, você é o seu pai”. Na verdade, Mia Couto disse sentir que ele está dentro de si. “Uma parte de mim vem dele, e isso ajuda-me muito a pensar que não tenho fronteira, e que não há um fim”, referiu.
Nesse sentido, explicou que a pandemia se viveu de uma forma “mais ligeira” em África. “O mundo não tem fim, porque é visto de uma forma circular.”
Apesar de ter 29 livros publicados em Portugal, Mia Couto disse não ter carreira. “Cada vez que começo um, estou a estrear-me com os mesmos medos e receios. Estamos a falar com os nossos próprios fantasmas interiores”, explicou. “O que está mal não é apenas a ordem política e económica, mas uma visão do mundo que tem de ser sacudida. Esta visão de que não há fronteira entre um humano e um não humano, o que é natural e o que é artificial, é fundamental para se conseguir uma harmonia.”
O escritor moçambicano esgotou a capacidade da Casa da Música, e muitos admiradores de Mia Couto tiveram de aguardar à porta pela sessão de autógrafos. Durante a sessão, Zeferino Coelho aproveitou para informar que as capas dos livros de Mia Couto passaram a ser ilustradas por pintores moçambicanos da atualidade, para os leitores ficarem a conhecer o seu trabalho.