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Ney Matogrosso leu todos os livros de Valter Hugo Mãe
O cantor brasileiro Ney Matogrosso disse ontem, dia 21, que leu todos os livros do autor português Valter Hugo Mãe, durante uma conversa com jornalistas, no âmbito do FOLIO, em que não manifestou preferência por nenhum género literário, mas sim pela “diversidade”. Presente no festival para apresentar a última biografia, escrita por Julio Maria, o artista contou mais pormenores da sua vida e respondeu a todas as perguntas da assistência, constituída sobretudo por brasileiros.
Ney Matogrosso contou que a compositora Lihla foi a responsável por ter começado a cantar, porque, na realidade, queria ser ator. Por influência dela, integrou a banda Secos e Molhados, e descobriu com eles que gostava de cantar. Julio Maria acrescentou que um dos elementos do grupo, o João Ricardo, era português e considerou que os violões tinham um “som ibérico muito forte”. “Era um vira português”, observou Ney Matogrosso.
“Foi um sucesso impressionante a primeira vez que atuámos no Coliseu, em Lisboa, em 1983”, recordou o artista brasileiro. “Não me percebi de nenhum estranhamento em relação a mim”, referiu o cantor, que sempre se procurou distinguir pela diferença, assinalada pela forma teatral como atuava em palco, pela maquilhagem e pelas roupas exuberantes, com peles, crinas de cavalos e chifres.
A primeira vez que ouviu Amália a cantar Barco Negro, Ney Matogrosso ficou tão impressionado que decidiu interpretar a música da fadista portuguesa num espetáculo. “Cantei no feminino e tive as críticas mais horrorosas. O melhor crítico do Brasil disse que eu chorava como uma rameira”, relatou. No entanto, assegurou que em vez de se sentir enfraquecido, se sentiu engradecido.
O livro escrito por Julio Maria percorreu 50 anos da vida do cantor brasileiro e revela pormenores que o próprio desconhecia, nomeadamente sobre o passado dos pais. “Quando li, achei que estava a fazer um livro de história, e não uma biografia”, observou Ney Matogrosso. Apesar de responder, muitas vezes, com silêncio às perguntas do biógrafo quando queria saber o que estava a achar da obra, enquanto o cantor a lia, nada foi censurado. “A minha única preocupação era ser tudo verdade, não ter nada distorcido”, sublinhou Ney.
“A minha infância toda foi uma guerra com o meu pai. Ele odiava-me e eu odiava aquele homem. Ele saía de casa, e eu falava à minha mãe: ‘tomara que um caminhão mate esse camarada’”, contou Ney Matogrosso. Como militar, não aceitava a forma de ser do filho, nem as suas amizades. Apesar de contar com a proteção da mãe, hoje com 101 anos, que receava que o marido o matasse, saiu de casa aos 17 anos. “Sou responsável por cada passo que dei na minha vida.”
Cumpriu dois anos de serviço militar e depois tornou-se hippie. “Fazia artesanato e vendia para as melhores boutiques”, contou o artista. Inconformado com a vida do filho, o pai procurou-o quando ele vivia no Rio de Janeiro e em S. Paulo para o tentar convencer a voltar para casa, mas Ney respondia-lhe que, apesar de ser pobre, era feliz e dava-se com quem queria. “Ele tinha de respeitar a minha realidade e acabou respeitando”, garantiu.
Para tal, foi determinante o “ímpeto” que teve de o abraçar e o beijar numa praça em S. Paulo, ato que deixou o pai embaraçado, mas que os reaproximou. “A partir dali até ao fim da vida dele, fui o único filho que ele abraçava e beijava quando encontrava e quando se despedia”, assegurou o cantor brasileiro. Embora o pai o tivesse agredido várias vezes, garantiu que não guardou “nenhum ressentimento”. Acompanhou-o até ao final da vida e dava-lhe “sorvetes” à boca.
Aos 82 anos, Ney Matogrosso disse não ter medo de morrer. “A única certeza de que a gente tem na vida é que a gente vai embora numa hora”, afirmou. “Alguma coisa continuará, não sei onde, nem como, nem estou preocupado em saber”, acrescentou. Apesar de sempre se ter assumido como homossexual, e de ter tido três relações mais importantes, disse que não tinha “talento para viver casado”. “Tentei, mas não fico confortável. Preciso do silêncio e de estar sozinho”, justificou. A sua companhia é a gata Pretinha.
“Acho que com o passar do tempo tudo será normalizado. As pessoas vão começar a entender que isso [homossexualidade] faz parte do espectro humano”, disse, em conversa com os jornalistas. “Não tive ninguém para abrir esse caminho, que eu abri, mas é um orgulho ser um artista respeitado no Brasil”, afirmou. Depois de três biografias, a vida de Ney Matogrosso vai dar origem a um filme. As filmagens vão decorrer no próximo ano e a personagem principal será interpretada pelo ator brasileiro Jesuíta Barbosa.