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“Ninguém diz que não deve haver limites à liberdade de expressão, quando as palavras causam dano”
Se, numa sala a abarrotar, um engraçadinho grita ‘fogo’, esta palavra deve ser proibida e o seu autor punido? A pergunta da jornalista Alexandra Tavares Teles, moderadora da sessão “Liberdade de expressão”, a propósito de um caso passado nos Estados Unidos, foi o ponto de partida para uma conversa entre a escritora Dulce Maria Cardoso e o humorista Ricardo Araújo Pereira, no FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, ontem, 17 de Outubro. “A liberdade de expressão é um conceito onde cabe quase tudo, exceto quando colide com os interesses dos outros e quando esses outros são o Estado ou outros indivíduos que constituem a realidade”, afirmou Dulce Maria Cardoso. “Essa história do fogo é só estúpida e a liberdade de expressão deve permitir dizê-lo.” No entanto, confessou ter mais dúvidas do que certezas. “É um assunto que colocaria três juízes a debater e não chegariam a uma conclusão.” Já Ricardo Araújo Pereira disse que gritar falsamente ‘fogo’ num teatro cheio pode ser ilícito, porque as pessoas entram em pânico e podem pisar-se umas às outras. “Ninguém diz que não deve haver limites à liberdade de expressão, quando as palavras causam dano”, sublinhou. Contudo, lembrou que os jovens em causa estavam a ser julgados porque andavam a distribuir panfletos contra o recrutamento para a guerra. “Toda a gente admite que haja restrições ao discurso. O problema é que há pessoas que querem que haja mais restrições ao discurso”, salientou o humorista. “Há pessoas que dramatizam um dano que pode nem acontecer, ou a interpretação estapafúrdia sobre o que foi dito”, acrescentou. “A pessoa tem o direito de interpretar Os Maias como: ‘Este livro sobre a civilização maia não é lá muito bom’”, ironizou. “Vivem-se tempos em que as pessoas têm tendência para a literalidade.” Ricardo Araújo Pereira utilizou dois casos diferentes que envolveram Ferro Rodrigues, a segunda figura do Estado, como exemplo de uma reação desproporcional. O primeiro quando chamou a atenção de André Ventura, do Chega, por usar a palavra ‘vergonha’ com demasiada frequência nas suas intervenções no Parlamento. O segundo deu-se quando o presidente da Assembleia da República estava a almoçar com a mulher num restaurante e foi ameaçado por negacionistas, mas não apresentou queixa. “É uma vergonha, sotor. Isso é que não!”. Preconceitos da linguagem “O politicamente correto tem muito que ver com uma autovigilância, de quem fala e dos pares, sobre determinadas palavras, em que tudo passou a ser ofensivo”, disse Dulce Maria Cardoso. Manifestou-se ainda contra a linguagem inclusiva do discurso do todas e todos. “A linguagem está cheia de preconceitos e de incapacidades e pode ser extremamente cruel, agora não acho que seja eficaz este policiamento e o ser cirurgicamente ridículo.” A este propósito, o humorista contou que ouviu uma entrevista, na rádio, com um secretário de Estado, em que a jornalista usou a palavra ‘sem-abrigo’ e ele respondeu ‘pessoa em situação de sem-abrigo’. “As pessoas acham que mudando a designação a realidade se altera”, observou, dando ainda o exemplo dos contínuos, que passaram a ser designados como auxiliares de ação educativa. “Imaginando que queremos um mundo muito puro, temos de começar pelas questões que prejudicam seriamente a vida das pessoas”, aconselhou a romancista. “Quando cá [Portugal] cheguei, fui chamada retornada. Tinha os lugares piores na sala de aula”, recorda. “Mas havia uma família que trouxe muito dinheiro e que era muito popular. Ser retornado não era problema nenhum, o meu problema era ser pobre.” Dulce Maria Cardoso assumiu-se como uma pessoa de esquerda, mas manifestou o seu desalento por existirem na sociedade grupos de privilegiados, a quem chamou “pançudos da democracia”. “Não acredito que a esquerda esteja a perder terreno, mas estamos muito distraídos daquilo que é importante. Tenho de estar desiludida quando as pessoas não vivem bem e quando a distribuição dos recursos é tão iníqua”, justificou. “Uma democracia é tanto mais fraca quanto os cidadãos sabem que não podem chegar ao tribunal e ver os seus assuntos resolvidos”, defendeu a escritora. “Mas o grande escândalo é haver gente a viver abaixo do limite da pobreza”, comentou. Uma posição subscrita por Ricardo Araújo Pereira: “A esquerda identificou, e bem, que cor da pele, o género, a orientação sexual são fatores de desigualdade, mas continua a esquecer-se de combater a desigualdade social.” Abandonados pelo sistema Após ter esclarecido que nada tinha contra a direita, Dulce Maria Cardoso alertou que “a direita contra as regras democráticas não é tão tonta como gostaríamos de pensar, pois está a tomar conta das redes sociais e a destruir os sistemas democráticos”. Quanto a André Ventura, defendeu que é uma pessoa inteligente por reunir toda a insatisfação de um grupo de abandonados que se sente excluído pelo sistema. “Ele tem os vícios do sistema, tem todos os vícios dos políticos tradicionais, mas vem com o discurso do nós e eles”, denunciou. Quanto a Ricardo Araújo Pereira, considerou o líder do Chega uma “fraude”, ao alegar que a liberdade de expressão é muito precária, mas querer proibir que se digam certas coisas no Twitter. “O meu problema com o André Ventura é o que é que ele vai fazer aos meus princípios. Nos Estados Unidos e no Brasil, houve incompetência dos candidatos que não os derrotaram. O nosso lado perdeu contra esses dois e tem de ter responsabilidade por isso.” A escritora assegurou ouvir Ventura com atenção. “Mesmo o assassino mais hediondo tem uma história e, pela minha profissão, tenho de criar personagens muito desagradáveis”, explicou. Contudo, não escondeu o medo da justiça popular. “Sou a favor de que o Estado de direito deve conter nas suas leis a maneira de resolver os conflitos”, defendeu. E identificou “uma crise enorme de intermediação”. “As redes sociais têm uma capacidade gigantesca de chegar ao outro”, afirmou Dulce Maria Cardoso. “Temos de arranjar uma maneira de falar para os convertidos e de nos habituar a ouvi-los. Essas pessoas têm problemas que nem nos passam pela cabeça”, afirmou. E deixou o exemplo de alguém que tem de trabalhar 12 horas e que percebe que o filho vai ter uma vida pior. Ricardo Araújo Pereira referiu um artigo de Francisco Louçã, no Expresso, em que o antigo líder do Bloco de Esquerda escreveu que “a melhor maneira de combater a extrema-direita é resolver os problemas de que ela se alimenta”. Informações em obidos.pt e foliofestival.com. Nota de imprensa